PABLO PEREIRA / blog da
garoa / estadão
Passei quatro dias fazendo plantões
no IML de Recife. Da manhã à noite, com sol ou chuva, acompanha-se ali o drama
humano do contato direto com a morte, em geral de maneira violenta ou por
causas desconhecidas e suspeitas. O sofrimento nos rostos, a constatação clara
das fraquezas e das mazelas mais temidas da vida e o desamparo das perdas são
presenças constantes na rua do cemitério de Santo Amaro.
Nos dois quarteirões
de lojas funerárias de um lado da rua e dos andares de gavetões e capelas de
velórios de outro, tudo tem algo a ver com o fim. Na esquina está o prédio do
IML, onde legistas e técnicos passaram mais de uma semana fazendo laudos sobre
o corpo do empresário Paulo César de Barros Morato, homem encontrado morto em
circunstâncias misteriosas na terça-feira, dia 21, depois de iniciar uma fuga
da Polícia Federal
A PF caçava uma turma que
lavou mais de meio milhão de reais, dinheiro usado para irrigar uma rede
de apoio a políticos, de 2010 e 2014, principalmente do ex-governador Eduardo
Campos. O então candidato presidencial morreu no acidente de avião em
Santos em 13 de agosto de 2014.
O avião em questão foi pago, segundo as
investigações da PF, pelo dinheiro que passou pelas contas de testas de ferro e
laranjas manejadas por um grupo do qual faziam parte o empresário envenenado
com mata-ratos num motel da periferia de Olinda e por pelo menos
outros quatro que estão presos.
À espera da conclusão dos laudos na
portaria do IML foi possível ver que a presença de imprensa até
contribuiu com a gente que usa aquela repartição. O governo mandou dar um tapa
na fachada, pintar até os muros. De repente, tudo ficou bem clarinho. Mas
só por fora. Por dentro, a coisa era bem escura. Um equipamento quebrado, por exemplo,
empurrou parte dos exames de Morato para o IML da Paraíba, onde foi constatada
a presença do chumbinho nas vísceras do morto. Os servidores resmungam
aqui-e-ali contra as condições de trabalho.
Denunciada essa necessidade da
transferência do material pelo sindicato dos policiais, o governo correu a
justificar que a tal máquina estava em manutenção e que um servidor, por conta
própria, pegou a estrada até João Pessoa para fazer o trabalho. Ossos do
ofício, que poderiam não existir. Mas se o Estado é campeão da patética
calamidade da microcefalia de bebês por causa da zika, como esperar que haja
atenção de autoridades com aquele setor? Não há recursos nem para a devida
atenção com a saúde, com a vida. Por que haveria para com o IML, com a morte?
Neste caso dos laudos do empresário
enrolado com corrupção, na verdade, delegados, agentes, burocratas, peritos
criminais e peritos papiloscópicos já batiam cabeça desde a noite do dia 22 na
inusitada cena da suíte número 2 do motel Tititi. Encontrado o corpo de Morato,
o cenário foi violado, foi um entra-e-sai do quarto que quando o povo da
polícia científica chegou, já era. Nada estava preservado.
Como miséria pouca é bobagem, na
tarde de quinta-feira havia lá 18 cadáveres aguardando liberação. Pela
portinhola dos fundos, por onde funcionários entregam os corpos às famílias,
saía um carro funerário atrás do outro. E uma funcionária ouvia,
contrariada, reclamações de agentes funerários zelosos para entregar aos
clientes o melhor serviço – queriam corpo mais bem arrumado dentro do caixão.
Mas, com aquela fila, de que jeito?
Um enterro em Recife, segundo
vendedores de caixões e cerimônias que ficam pela rua, pode custar de R$ 800 a
R$ 12 mil, de acordo com o interesse ou luxo desejado pelo freguês.
Basta o responsável pela retirada do cadáver entregar a ele o atestado de óbito
– e aguardar. O documento é obtido na sinistra porta pela qual, de tempos em
tempos, sai um funcionário do IML com um papel na mão chamando “familiar de
fulano está aí”. O resto da tarefa, do registro em cartório à preparação
do corpo, das coroas e transporte ao túmulo, é com o pessoal das lojas.
Pode ser até menos burocrático,
parecer consolo, mas não é mais fácil para as famílias. E demora. Há
gente que fica por lá perambulando dias à espera da liberação do documento com
a causa
mortis. Em geral, pessoas de aparência humilde, que dependem do serviço
público até na hora bruta, se acumulam no pátio. E a toda hora chega mais
carro de polícia carregando mais uma história da violência brasileira, mortos e
vivos.
No setor de análises e laudos de
corpo de delito, presos escoltados andam algemados dos carros de polícia às
salas de vistoria na parte interna do complexo. Na última quarta, dois rapazes,
ladeados por policiais grandes e de roupas pretas, caminhavam devagar
arrastando correntes nos pés e com mãos às costas
ornadas com brilhantes algemas. Estavam à espera de peritos para,
eventualmente, depois seguirem para alguma cadeia superlotada – tipo cemitério
para vivos. Este, aliás, outro cenário dantesco – que até o STF já reconheceu
como inconstitucional no país.
E há ainda uma sala somente
para os exames de traumatologia, ao lado do setor de liberação dos cadáveres.
Em geral, também cheia de gente esperando por um papel. Do lado de fora,
na calçada, As tias de café de térmica e quitutes faturam com a lentidão do
dia. Vendem de cocada a cachorro-quente. Café de copinho é R$ 0,30. Cocada, R$
0,50; o hot dog, R$ 5, dependendo dos ingredientes, que, afinal, nestes tempos
de crise todo mundo é filho de Deus.
Indignados com parte da situação,
principalmente da categoria dos policiais que lá trabalham, sindicalistas
criticam a administração pública estadual. Defendendo os funcionários, dizem
que a cúpula da Secretaria de Defesa Social (SDS) compromete o caso Morato e a
imagem da Polícia Civil de Pernambuco.
Nota divulgada neste sábado, 2, diz
que “a partir das denúncias sobre ingerências na atuação da Polícia Civil
de Pernambuco no caso P.C. Morato, uma sucessão ‘de trapalhadas’ aconteceu
na condução e divulgação do caso. No dia seguinte a ocorrência, o Sindicato dos
Policiais Civis de Pernambuco (Sinpol-PE) recebeu a denúncia de que a equipe de
peritos designada para dar continuidade a perícia papiloscópica, iniciada na
noite anterior, foi impedida de realizá-la”. O sindicato pede a demissão do
secretário de Defesa Social de Pernambuco, Alessandro Carvalho. “Estamos
lutando por uma polícia que não investigue apenas ladrões de galinhas, mas
também investigue e prenda os ‘capas pretas’, responsáveis pela corrupção, que é
o maior mal que nosso estado e o nosso país têm enfrentado. Ela precariza os
serviços públicos e desvaloriza seus servidores”, diz na nota o presidente
do Sinpol, Áureo Cisneiros.
O governo se defende dizendo que tudo
não passou de uma falha de comunicação entre as equipes investigadoras da
Polícia Civil e que há exploração política no caso. Na PF, o discurso é o de se
aguardar o trabalho da polícia civil pernambucana. E o superintendente da PF em
Pernambuco, Marcello Cordeiro, não vê necessidade de entrar no caso, pelo menos
por enquanto. Morato, segundo Cordeiro, era operador que conseguia coletar CPFs
e documentos de “laranjas” para esquentar o dinheiro.
A Justiça já bloqueou R$ 1.654.600,00
nas 18 contas investigadas. Até agora as contas mais endinheiradas são de
empresas – R$ 820.832,00 em uma e R$ 250.518,00 em outra. Mas entre as contas
de pessoas físicas há uma com R$ 450.522,00. E há também contas, como a de um
dos presos, nas quais a PF deu com os burros n’água: o saldo é de R$ 7,11. E em
pelo menos uma das contas de Morato o valor encontrado foi de R$ 0,03.
Para a PF, a conta raspada não
causa surpresa. Nos últimos meses, o esquema estava funcionando à base de
dinheiro vivo, por fora do sistema bancário. Nos bastidores,
investigadores que acompanham o caso apontavam, na semana passada, o suicídio
como a causa mais provável da morte do empresário.
Porém, quem conhecia bem Paulão, como
era chamado pelos amigos de Tamandaré, onde teve um pequeno comércio de
telefones celulares e morou pagando aluguel, a história não bate. E a hipótese
do suicídio soa estranha. Obeso, Paulão tomava remédios para hipertensão e
diabetes, alguns encontrados com ele no motel. Mas um dos principais amigos, o
padre Arlindo Júnior, conhecido da família, se nega a acreditar no suicídio. E
rejeita as alcunhas de “testa de ferro”, “laranja”, “chefe de esquema”. Para o
padre, que o conheceu desde criança e em 2009 fez o casamento dele na Igreja
Matriz de São Pedro, em Tamandaré, Paulão “era um homem alegre, um batalhador”.
.
Postar um comentário
Blog do Paixão